“Não existem centralidades em Angola”

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É frontal na abordagem sobre o desenvolvimento integrado das cidades, sobretudo quando está em causa os atropelos urbanísticos. Nesta segunda parte da entrevista, concedida ao Jornal Metropolitano de Luanda, a arquitecta Maria João Teles Grilo enfatiza que “não há centralidades em Angola” por ausência de serviços essenciais para uma comunidade trabalhar, viver e divertir-se

Na década de 2000 assistiu-se, em Luanda, ao que muitos chamaram, uma verdadeira revolução no sector da construção. Como avalia as obras que se fizeram e continuam a ser feitas?

Não considero essas construções uma revolução. Houve de facto um boom em termos de construções, mas aleatória, sem planificação e regras. Tudo feito em função de vontades individuais e meras razões de lucro. Para se fazer uma revolução, é necessário unir todas as cabeças pensantes do país para darem as suas contribuições. Pensar e definir por onde se quer ir, como, porquê e objectivos. É assim que as coisas funcionam em qualquer parte do mundo. Estou em crer que não somos uma excepção.

Não houve consultas?

Quem foi consultado? Os arquitectos e engenheiros nacionais não foram tidos nem achados nestes

Uma centralidade é um sítio onde o cidadão encontra as respostas para tudo que necessitar, trabalhar, tratar dos documentos pessoais, fazer compras, pôr os filhos na escola, ter postos médicos e projectos. E mais grave, quase todos, vieram de foram e não têm nada a ver connosco, nem com a nossa realidade. Podiam, também, ter vindo de fora, nada contra, desde que fossem bons. Isso é gravíssimo! É como se nós não existíssemos e fossemos uma cambada de atrasados mentais, que não entendemos nada disso, o que não é verdade. Temos pessoas extremamente competentes, com capacidade de pensarem a cidade e desenharem estrategicamente o seu futuro urbano.

De onde é que vêm esses projectos?

Não sei de onde são encomendados, muitos são portugueses. Elaborados por pessoas que não entendem absolutamente nada em relação ao nosso país. O objectivo deles é vender, enquanto os do nosso lado estão interessados apenas nas “comissões”. Como consequência, estamos a ficar com uma cidade completamente sem rosto. Monólitos de vidros expostos, climaticamente muito desajustados, culturalmente vazios e formalmente anónimos.

É contra os edifícios vidrados?

Não sou contra o vidro em si. Sou contra edifícios de vidro exposto, sem protecção à exposição directa do sol. Não há nada nos monólitos de vidros que se identificam com a nossa identidade. É como diz o povo sábio, o povo é sempre sábio, é como se fossem autênticos microondas. E se faltar o ar condicionado? Quanto custa a sua manutenção e em termos energéticos? Importados de outras realidades, nem sempre se adequam ao nosso modus vivendi, a começar pelo próprio clima, o nosso modelo identitário, do ponto de vista do uso do espaço interior, de estar e trabalhar, confortos vários a que qualquer arquitectura tem que se ajustar.

Não é possível estar nos prédios vidrados se não houver quilos de ar condicionados. Luanda tem um clima tropical húmido, de 28 graus médios e 93 por cento de humidade. Não podemos brincar com isso. O clima é sempre um aspecto importante. Eu sou do Lubango e adversa a esse tipo de fotocópias. Acredito que a arquitectura tem que respeitar o lugar geográfico, a cultura, a identidade física, o conforto ambiental. O que se faz no Lubango, não é mesmo que deve ser feito em Luanda, no Uíge ou no Zaire. As características são completamente diferentes, desde as culturas, ao clima e os hábitos de cada região.

Mas as coisas tendem a evoluir?

Considera evolução o que estamos a fazer? Se estivéssemos a evoluir estariam as pessoas a viver tão mal? A cidade vai-se degradando sem condições de habitabilidade, sem infraestruturas sanitárias, sem espaços verdes, sem equipamentos sociais e culturais. O que nós estamos a fazer não é evolução. Se assim fosse, os cidadãos falariam e viveriam na cidade com qualidade e bem-estar. Estamos a matar a nossa cultura urbana.

A arquitectura moderna é anti-colonial?

A arquitectura moderna é todo esse movimento anti-colonial do qual fizemos parte. Luanda cresceu cheia de edifícios do movimento moderno. Quem entende um pouco de arquitectura moderna facilmente vai perceber que se trata de uma arquitectura completamente anti-fascista. Essa é uma capitalização que, inteligentemente, o poder poderia aproveitar a seu favor. Isso é um património que nos pertence, mas, infelizmente, não ligamos nenhuma. Estamos a deixar apodrecer e a destruir paulatinamente. É grave destruir a identidade de uma cidade.

Considera ainda possível a recuperação do que se perdeu?

Claro que sim. Parte dela é recuperável. Outra deixou-se degradar muitíssimo. Mas estamos ainda a tempo de salvar o que sobrou.

Mas grande parte das suas estruturas estão alteradas? Estão violadas! A guerra causou a superlotação da cidade. Apartamentos que eram para quatro ou cinco pessoas, hoje têm 10. As famílias foram-se juntando, pessoas foram recebendo os seus familiares que fugiam a guerra nas suas zonas de origem. Esse foi um processo que gerou grandes alterações, agravadas com à degradação pela ausência de água, a luz e as sobrecargas. Se me perguntarem se isso é recuperável, eu vou dizer que é. Para mim, a cidade é recuperável, se nós quisermos ter uma cidade com identidade e qualidade.

Há quem considera obrigação do Estado a construção de zonas residências. Partilha do mesmo ponto de vista?

Em qualquer país, a economia de mercado e o liberalismo económi- co têm os seus aspectos positivos e negativos. Para mim, a obrigatoriedade do Estado deveria incidir apenas sobre os espaços públicos.

Fonte: Luanda Jornal Metropolitano

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