Retrato do Musseque

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1915

Aqui não há cafés e bares luxuosos

Nem há jardins dignos deste nome

Não se recepciona carta por correio

Como muitos gostavam de o fazer

O silêncio é barbaramente linchado

E a língua portuguesa é pontapeada

Imensos jovens amados pelo talento

São castigados pela falta de ambição

Profissionais doutorados em ofícios

Kudurizam a vida com álcool mortal

Pessoas com diferentes habilidades

Desprezam grandes oportunidades

Abusando de mentiras esfarrapadas

Porém, há oásis de orgulho bairrista

Em terras, palcos e lugares famosos

Onde pessoas talentosas se exibem

Vizinhos cantam ou insultam piadas

Provocando discussões e agressões

Raparigas que têm gosto de homem

Abortam brincadeiras de pai-e-mãe

Músicas, bebidas e pinchos da cara

Tantas vezes resultam em violência

Mortes a tiro e à facada competem

E roubos e furtos lidam muito bem

Águas pluviais e lixo apaixonam-se

E vivem em união de facto violenta

Inúmeros gatos choram a feiticeiro

Sobre as chapas de casas precárias

Provocando a ira de supersticiosos

Que atacam impropérios de alívio

E ensaiam os palavrões melódicos

Afastando assim a ameaça do mal

As espinhas e ossos bem triturados

Compõem o lixo de fome e pobreza

Entristecem dementes esfomeados

E afugentam cães vadios e raivosos

Chafarizes são monumentos a nada

Os baldes e as rodilhas continuam

Autoclismos assim como chuveiros

São sonhos de pessoas visionárias

Botijas e panelas ao lume sob vigia

Impedem que as cabeças drogadas

Com estômagos a roerem de fome

Saqueiem gente que luta pela vida

As águas nauseabundas e mosquitos

Organizam excursões aos cemitérios

Ratos arrogantes multam habitantes

Devido às baratas e à falta de higiene

Gente a lavar a boca à porta de casa

Panos amarrados e vassoura na mão

Anunciam o começo de um novo dia

Gente com curiosidade pornográfica

Assistindo aos actos sexuais de cães

Fazem das ruas locais de espectáculo

«Xê, desce daí! Seu cão! Ngombiri!»

Privacidade invadida em casa alheia

Pêlos púbis apanhados de surpresa

Por homens que desejam mulheres

Que distraidamente lavam o corpo

Em latrinas ou quintais indiscretos

Há muita resistência às autoridades

E prática de actos de justiça privada

Os polícias agem com agressividade

Ainda que sem motivos para o fazer

Morte é convívio! É emoção! É dor!

É dor no coração com copo na mão

Relatos hilariantes não adormecem

Para consolarem a família enlutada

Sentimentos de pesar pelo falecido:

«Amigo Joaquim, eterno descanso!

Que dor! Chorei tanto a tua morte!

Vou continuar a lamentá-la em casa

Vou levar feijão de óleo de palma

Também vou levar postas de peixe

É que eu gosto muito de peixe frito

Estimulante das glândulas lacrimais

Deste teu amigo visivelmente triste

Venho ao komba, dia do adeus final

Trarei três amigas que choram bem

Fá-lo-ei pela nossa grande amizade»

Ainda em relação ao defunto, diz-se:

«Agora, deixa-me molhar este chão

Com duas cervejas bem fresquinhas

Para te homenagear devidamente»

José Carlos de Almeida

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