O Natal e a sua essência

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O Natal chega todos os anos com a promessa de luz, mas, para muitos, já não ilumina como antes. Há uma sensação colectiva de que a festa perdeu o rigor, o encanto e até a alma. O calendário insiste, as datas mantêm-se, mas o espírito parece cada vez mais distante da realidade das famílias. O Natal continua a chegar, mas já não encontra as mesmas condições para permanecer.

Durante muito tempo, o Natal era visível nas ruas, nos bairros e nos rostos. As árvores enfeitadas com jogos de luzes coloriam as avenidas e transformavam o quotidiano num cenário de esperança. Havia um ambiente de festa que começava muito antes do dia 25 e se prolongava até ao fim do ano. Hoje, essa imagem tornou-se memória.

Nos bairros, as contribuições para o fim de ano eram quase um ritual sagrado. Cada família ajudava como podia, e ninguém ficava de fora. Havia um sentimento de pertença, de partilha e de compromisso colectivo. O Natal era construído em conjunto, com sacrifício, mas também com alegria.

Os armazéns e as ruas fervilhavam de movimento. As vendas “bombavam”, como se dizia, e o comércio sentia o pulso da época festiva. As zungueiras multiplicavam as voltas, estranhando a rapidez com que o negócio crescia. Havia dificuldade, sim, mas também havia circulação, expectativa e vida.

Hoje, o cenário é outro. O poder financeiro das famílias diminuiu de forma visível e dolorosa. O Natal tornou-se mais pobre, mais contido, mais silencioso. Já não se compra o que se deseja, compra-se o que é possível. E, muitas vezes, nem isso.

O novo “menu” do Natal diz muito sobre os tempos que vivemos. Fazer sócia, misturar asa com pele de frango, um pacote de massa, um quilo de arroz, tomate de cem, cabuenha frita e um “feliz Natal” dito com esforço. Não é falta de vontade, é falta de meios.

Não se trata apenas de comida. Trata-se da sensação de que a celebração foi reduzida ao mínimo, quase como um acto de resistência. As mesas já não são fartas, mas tentam ser dignas. E, ainda assim, muitos sentem que falharam, quando na verdade apenas sobreviveram.

Criou-se, ao longo dos anos, a ideia de que o Natal se mede pela abundância da mesa e pela quantidade de presentes. Mas se assim fosse, milhões estariam excluídos da celebração. O Natal não pode ser um privilégio reservado a quem tem mais recursos.

Talvez seja tempo de perguntar se não nos afastámos do verdadeiro sentido da data. O Natal não nasceu do consumo, nem do excesso. Nasceu da simplicidade de um menino numa manjedoura, longe do luxo e da ostentação.

E se pensarmos que o Natal é apenas mais um dia em que se comemora o nascimento de Cristo? Um dia que convida à pausa, à oração e ao silêncio interior. Um dia em que a família se reúne não apenas para comer, mas para agradecer.

E se pensarmos que o Natal é mais um dia em que se ora em família, mesmo que seja com poucas palavras e muita fé? Um dia em que se pede força para continuar e sabedoria para não perder o rumo. Um dia em que Deus volta a ser centro, e não acessório.

E se aceitarmos que a prioridade não é a mesa farta de bolo-rei, cozido, bacalhau com natas e doces variados? Que a verdadeira abundância está na presença, no respeito e no amor partilhado entre quem está à mesa?

Talvez o Natal precise ser resgatado do peso das comparações. Comparar mesas, roupas e presentes apenas aprofunda frustrações. O Natal não deveria ser um espelho das desigualdades, mas um antídoto contra elas.

Quando olhamos com atenção, percebemos que muitas famílias já celebram o Natal da forma mais pura possível: com o pouco que têm, mas com muito coração. Nessas casas, o Natal ainda resiste, mesmo sem luzes, mesmo sem embrulhos.

O Natal também é um dia de reflexão sobre as famílias que construímos. Sobre os valores que transmitimos e as escolhas que fazemos. A sociedade que temos hoje nasce, em grande parte, das famílias que fomos e somos.

Celebrar o Natal é, também, reconhecer as falhas, pedir perdão e recomeçar. É perceber que não basta trocar presentes, é preciso trocar atitudes. Não basta reunir uma vez por ano, é preciso cuidar o ano inteiro.

Num contexto de tantas dificuldades, o Natal pode ser uma oportunidade de reencontro com a solidariedade. Um prato partilhado, uma palavra de conforto, um gesto simples podem ter mais impacto do que qualquer presente caro.

O Natal chama-nos à empatia. A olhar para o vizinho, para o parente distante, para quem passa necessidade em silêncio. Chama-nos a lembrar que ninguém deveria celebrar sozinho, nem com fome, nem sem esperança.

Mesmo pobre, o Natal pode ser digno. Mesmo simples, pode ser profundo. Mesmo silencioso, pode ser transformador. Tudo depende do lugar que lhe damos no coração.

Cristo não nasceu num palácio, nem rodeado de riquezas. Nasceu na humildade, para lembrar que a grandeza humana não está no que se possui, mas no que se partilha. Essa continua a ser a maior lição do Natal.

Que este Natal nos ensine a desapegar do supérfluo e a valorizar o essencial. Que nos ajude a compreender que ter menos não significa ser menos. Que nos devolva a capacidade de agradecer, mesmo em tempos difíceis.

Que o Natal seja um tempo de esperança renovada, de solidariedade activa e de fé viva. Um tempo em que cada gesto conta e cada coração importa. Um tempo em que ninguém é invisível.

No dia em que Cristo nasce, que possamos nascer com Ele também. Nascer para a esperança, para o amor e para a responsabilidade colectiva. Que este Natal, mesmo simples, seja verdadeiro. E que, apesar de tudo, continue a fazer sentido.

Por: YARA SIMÃO

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